Comunidade de Vida

A concha do náutilo, revestida de madrepérola, cujos compartimentos vão crescendo cada vez mais através da vida do molusco que sobrevive há 450 milhões de anos, tornou-se um símbolo de expansão e renovamento.

"Quanto mais reflito sobre como a inteira criação faz parte da mesma comunidade da vida, mais começo a ver os ensinamentos, a vida, morte e ressurreição de Jesus também de uma nova maneira."

"Aquilo que receber como um dom, ofereça como um dom."

[Bem-Aventurada Francisca Schervier, fundadora da Congregação das Irmãs Franciscanas dos Pobres

Paz e bem a você! Com esta nova publicação é com alegria que oferecemos uma série de conversações e entrevistas para explorar o significado mais profundo da diretriz do nosso Capítulo Geral: “Gerar compaixão e esperança na comunidade da vida.” A presente conversação com Elaine Prevallet, S.L., que escreve sobre o desafio para a fé cristã de adaptar-se à perspectiva cosmológica e evolucionária contemporânea.

 

 

 

Elaine Prevallet, SL

Durante tempo colocamos neste espaço A Carta da Terra, e como esta afirmação de principios éticos e valores fundamentãos são tão ligados com o Carisma das Irmãs de São José.
Agora queremos continuar oferecendo pistas de reflexão e agradecemos as Irmãs Franciscanas dos Pobres para a entrevista com Irmã Elaine Prevallet, SL.
As Irmãs de São José de Rocheste refletimos o livro dela A Serviço da Vida durante todo ano passado, em Rochester e no Brasil, querenco crescero juntas na consciencia da e compromisso com a Comunidade de Vida. Temos traduzido este livro em portuguese, se alguem quer um exemplar, entre em contato conosco atraves deste site.

"Somos uma única comunidade da vida e, como todas as espécies, temos uma função a cumprir para aumentcar o bem comum."

O que significa ser um com a comunidade da vida? Quais são as maneiras pelas quais ignoramos ou transtornamos a comunidade da vida?
"Onde foram parar todas as flores? ... Quando iremos aprender? ..." cantava o pacifista Pete Seeger durante os protestos contra a Guerra do Vietnã, na década de 1960. Essa canção me voltou à mente muitas vezes, mas agora me ocorre num contexto mais amplo, como uma mensagem ainda mais urgente. Agora, em meio à maior extinção das espécies dos últimos 65 milhões de anos, poderíamos cantar "Onde foram parar todas as espécies?" ou "Onde foram parar as puras águas cristalinas?", ou "Onde foram parar as magníficas florestas tropicais, as geleiras, as ilhas da Polinésia? ..." Poderíamos elaborar uma longa ladainha de novos versos para essa canção. Confrontando as consequências da mudança climática global, combinadas com a crescente militarização e a proliferação nuclear no planeta, percebemos que a própria Terra está nos dando sinais cada vez mais drásticos de que nós humanos precisamos realizar algumas grandes transformações. Estamos destruindo o nosso magnífico planeta. Temos razões imperativas para sondar longa e profundamente aquilo que só pode ser considerado como uma falha nossa em compreeder o que significa sermos responsáveis enquanto seres humanos. Mas podemos decidir mudar.

Quando iremos aprender? Que dicas estamos deixando escapar? Outras formas de vida existiram antes da nossa. Poderiam sobreviver a devastação que nós causamos, já que não dependem de nós para existir. Nós, ao contrário, precisamos delas para sustentar a nossa vida. É só pensar: sem árvores e outras plantas crescendo não podemos respirar nem comer; sem água potável não podemos subsistir. Nós, os seres humanos, não podemos nos apartar de tudo aquilo que chamamos de “natureza”, porque não podemos existir fora do contínuo sustento que dela recebemos. Sendo uma das últimas espécies a surgir na longa trajetória dos éons da evolução da Terra, carregamos essa história inteira no corpo e inclusive na mente. Somos uma única comunidade da vida e, como todas as espécies, temos uma função a cumprir para aumentar o bem comum. Mas nós humanos temos de escolher nossa função e saber desempenhá-la. Quem achamos que somos?

 

O Batismo de Cristo – de Daniel Bonnell (publicado com permissão)

Elaine, como foi que você se tornou mais consciente da "comunidade da vida"? Poderia nos dar um exemplo da sua experiência?

Uma das minhas primeiras experiências da "comunidade da vida" aconteceu de um modo bem simples. Pela primeira vez na vida, havia uma toceira de peônias crescendo diante de casa. Quando começaram a dar botões, fiquei muito perturbada ao ver um cordão de formigas atacando a superfície bem fechada das futuras pétalas. Fiquei horrorizada, imaginando que iam acabar com as flores antes que desabrochassem. Quando partilhei essa apreensão com pessoas amigas, riram-se, como era previsível, divertidas. Contaram-me que as formigas desempenham um papel essencial no desabrochar das peônias porque comem a gosma que cobre seus botões para que as flores possam se abrir. Longe de serem destruidoras, as formigas estavam realizando uma função crucial no ciclo de vida das peônias.
Eu estava testemunhando um padrão fundamental de cooperação na natureza. Havia interpretado o que via através da lente da competição em vez de compreendê-lo assim como ele é – um padrão de mutualidade, de intercâmbio. Comecei a notar como as criaturas terrestres convivem com seus companheiros de meio ambiente, cada um no seu nicho, contribuindo com seu próprio dom, cada um recebendo os dons dos outros. Muitas espécies podem conviver numa mesma árvore, mas enquanto uma irá se hospedar dentro da casca, outra se aninhará nos seus galhos. Certos pássaros têm um bico bastante forte para quebrar nozes, mas deixam um esparramo. Com certeza, uma espécie diferente estará por perto, pronta para limpar tudo. Uma procura alimentos de dia, enquanto a outra sai em busca deles durante a noite.

 

"Estava começando a encontrar cooperação por toda parte! Outras espécies além da humana parecem ser capazes de conviver cooperativamente e mesmo vicejar. Por que nós não conseguimos?"


Como a comunidade da vida é mutuamente revitalizadora?

Quanto mais me concentrei na observação, mais fenômenos se revelaram aos meus olhos. O esterco do gado atrai imediatamente os besouros de estrume que se põem a trabalhar na sua decomposição – não somente obtendo nutrientes para si mesmos, como também enriquecendo o solo com a sua excreção. Estou lendo sobre espécies marinhas que instalam verdadeiras "estações de serviço" onde vão fazer uma verdadeira higiene dental e "cuidar" de outras espécies. Um membro de uma espécie – digamos, uma cachorra ou uma velha tartaruga – poderá tomar conta e até nutrir um membro de outra espécie. Estava começando a encontrar cooperação por toda parte! Outras espécies além da humana parecem ser capazes de conviver cooperativamente e mesmo vicejar. Por que nós não conseguimos?
Cada respiro meu é um intercâmbio criativo com as árvores e tudo o que é verde e que cresce, e a minha vida depende dessa troca. Sou uma pequena participante do imenso processo planetário de criar vida, reciprocamente. Mas sou capaz de perceber isso? Agradeço às árvores por processarem o gás carbônico que exalo e por me darem o oxigênio que me é indispensável para viver? E se eu parasse para reconhecer que cada membro da "cadeia alimentar" que me nutre é o dom de uma espécie vivente?

Cada respiro meu é um intercâmbio criativo.Nosso Criador parece vivificar um processo que é absolutamente dependente da partilha ... Nada pode existir sem partilhar sua existência. Depois, penso na nossa sociedade consumista e sobre como eu e todos nós usamos e acumulamos “coisas” de que não necessitamos. Como somos imprudentes e desrespeitosos para com a generosidade da inteira comunidade da vida que nos sustenta! E como o nosso comportamento consumista nos cega! A escritora Barbara Kingsolver observa que, na nossa cultura, não reconhecemos o consumismo como um erro espiritual, nem mesmo como mau comportamento! Simplesmente não o vemos. Ou talvez, mais corretamente, vemos tudo através das enganosas lentes da dominação ("a espécie humana é soberana e pode fazer o que quiser com o resto da criação"), e das lentes da competição ("ter mais é melhor") que nos proporciona aquele status social de quem possui mais do que os outros.

Pensei também sobre como temos medo de morrer – tanto daquele morrer-para-si-mesmo que o amor quotidiano requer de nós, quanto daquele morrer que marca a ruptura do nosso viver sobre a Terra. Até parece que achamos inapropriado que o ser humano possa morrer, ignorando o fato que todos os seres do planeta estão neste momento oferecendo sua vida (conscientemente ou não) pelo bem do todo. Na magnífica expressão da autora Annie Dillard, tudo está sempre ou beliscando ou sendo beliscado. Tudo. Inclusive nós, os humanos. Se o resto da criação participa continuamente do meu processo vital, mantendo-me viva e com saúde, o que posso dar em troca? Como estou participando da sustentação e da intensificação do processo?

 


Como começamos a ver com novos olhos?

Nós, os Terráqueos, precisamos ampliar o quadro em que nos vemos! Estamos participando de um processo vital que começou éons atrás, e nos movendo adiante para manifestar uma crescente capacidade de amar a consciência e de amar conscientemente. Quanto mais reflito sobre como a inteira criação faz parte da mesma comunidade da vida, mais começo a ver os ensinamentos, a vida, morte e ressurreição de Jesus também de uma nova maneira. Jesus, enquanto Palavra Divina que se fez carne, tanto nos ensina como nos capacita a viver conscientemente e com amor, como participantes desse espetáculo permanente da criação contínua de Deus. Jesus nos lembra que participar do viver também significa participar do morrer, e que esse processo pode ser – pretende ser – vivificador para os outros, além de nós mesmos. Seu ensinamento nos alerta para os mais carentes entre nós, aqueles seres – de todas as espécies – que não têm status e nem uma voz, e nos adverte que é este o nosso próximo por cujo bem-estar somos responsáveis. Esse seu ensinamento e exemplo nos inspira; o dom do Espírito nos capacita a viver de modo relacional e caridoso para com a inteira criação.

 

O que quer isso dizer para aqueles entre nós que decidiram consagrar sua vida a Deus?

Nós, humanos – e de fato todos os seres vivos, até um certo ponto – temos no nosso profundo um instinto de vida. No mundo ocidental chamamos a isso de “instinto de sobrevivência”, que é a energia que impele membros individuais de uma espécie a obter e fazer aquilo que contribui à sobrevivência da sua espécie e, consequentemente, à sobrevivência do grupo mais abrangente, no processo permanente da vida. Esse instinto se exprime nos animais e nos seres humanos na urgência de possuir (assim como os esquilos enterram suprimentos de nozes para o inverno), no impulso inato de relacionar-se, também expresso no impulso sexual (que preserva o futuro da espécie), e na urgência de dominar ou controlar (como quem reclama seu próprio território). Todos esses três instintos garantem a continuidade da vida da espécie. Em todos os seres vivos esse instinto representa a energia de uma Vida mais ampla, que se expressa criativamente em sempre renovadas formas de vida e potencialidades. Mas é importante notar que essas energias, que são instintivas nas outras espécies, em nós humanos se tornam concientes – e a sua expressão passa a ser uma questão de escolha. Elas devem ser colocadas a serviço da inteira comunidade da vida, conscientemente e com amor.
Não é de surpreender que essas energias instintivas incidam nas mesmas áreas tradicionalmente mencionadas como foco e intenção das mulheres e dos homens que desejam conscientemente dedicar-se ao bem-estar e à intensificação da vida como um todo. Na tradição cristã, costumamos chamar a isso de votos – pobreza, celibato e obediência. Algumas pessoas se encontram impelidas a se reunir em comunidade com a intenção de se ajudarem mutuamente a direcionar essas energias. Querem monitorar seu senso de segurança, viver confiantes em vez de ir buscar garantias no acúmulo de riquezas, ou mais simplesmente de "coisas". Querem se apoiar umas às outras para direcionar suas energias conectivas de modo a intensificar a vida de todas as espécies. Querem usar sua influência pessoal não para dominar, mas sim para dispor dos seus talentos e potencialidades a serviço das necessidades do restante da comunidade da vida – curando, ensinando, construindo a paz. Deve ficar claro, porém, que essas energias são energias vitais – não nos pertencem pessoalmente, nem são propriedade particular das mulheres e dos homens que se consideram "religiosas e religiosos". Pertencem ao processo vital mais abrangente, que continua seguindo adiante, que continua a estabelecer novas conexões e, acima de tudo, continua fortalecendo os vínculos, penetrando novas profundezas de amor consciente e de comunhão. Precisamos direcionar nossa atenção à maneira de exprimir essas energias na vida.


A participação consciente no processo de morrer/renascer, que é a essência da Vida, é a nossa responsabilidade humana.
Dado que, como vimos, a cooperação é fundamental para a continuidade do processo vital, de que maneira podemos nós participar, enquanto seres humanos, para que a vida de cada um de nós possa fazer uma contribuição, ainda que minúscula, porém insubstituível, pelo bem da inteira comunidade da vida? Em cada tradição espiritual prestar atenção é uma prática central e essencial. Precisamos "caminhar devagar e nos inclinarmos mais vezes, com reverência", como diz a poeta Mary Oliver, para discernir os padrões imbuídos nos processos vitais, para podermos participar em mutualidade e permuta em vez de exercer domínio e controle. Precisamos estar conscientes dos movimentos sutis do nosso coração, dos jogos mentais que praticamos, das maneiras pelas quais nosso ego se intromete mesmo nos nossos momentos mais generosos. Precisamos aprender a estar atentos.

 

Como a Cruz se revela à comunidade da vida?

É preciso lembrar que a cruz é um sinal fundamental da nossa caminhada cristã. Não é um convite a sofrer até os limites do suportável, como se Deus nos amasse mais quando sofremos. Ao contrário, é um sinal para nos lembrarmos que tudo vive porque partilha a sua vida. E que "morrer" – dar de si – é, ou pode ser vivificador quando é acolhido por um coração amoroso. É tão contra-intuitivo! Nosso instinto imediato é fazer tudo o que podemos para nos assegurar, para intensificar as nossas vidas. E nisso, em si, não há mal algum. Mas então teremos sempre que nos colocarmos dentro desse quadro mais amplo da comunidade da Terra, e da revelação de Deus para nós, através de Jesus: "... se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, ficará ele só; mas se morrer, dará muito fruto" (João 12, 24). Optando por viver cooperativamente, conscientemente e participando de boa vontade na mutualidade e no intercâmbio com a vida mais ampla da qual somos uma pequena parte, cumprimos a função que nos foi confiada enquanto seres humanos. A participação consciente no processo de morrer/renascer, que é a essência da Vida, é a nossa responsabilidade humana. Tudo realmente depende de compreendermos isso. A sobrevivência de tudo o que vive no planeta Terra depende disso.

 

Algumas perguntas para reflexão:

 

Como avalio o senso das minhas "necessidades" com relação à inteira comunidade da vida?

No que é que se baseia o meu "senso básico de confiança"?

Procuro usar meus talentos de maneira generosa, para ser útil aos outros?

Costumo monitorizar meus anseios de auto-satisfação para manter a torrente da energia do Amor emanando para o mundo?

 

 

As Irmãs de São José de Rochester tem traduzido em Portuguese A Serviço de Vida. Pode ser encomendada atravês www.isjrochester.com.br

Nosso agradecimento para o uso desta entrevista com Ir. Elaine Prevallet.